Ao princípio era o barco. Primeiro à vela, depois a
vapor. Como ilhéus que somos a nossa perceção do mundo exterior sempre esteve
dependente daquilo que chegava pelo mar. Esta condição existencial,
particularmente sentida nas ilhas mais periféricas, ficou plasmada na linguagem
popular pela expressão dia de São Vapor. Atualmente, com o alargamento do
transporte aéreo a todas as parcelas do arquipélago, o termo caiu em desuso e
apenas sobrevive na memória daqueles que recordam com saudade as viagens
marítimas no Lima ou no Carvalho Araújo.
Não sou desse tempo nem experimentei o prazer da
vida a bordo em câmara lenta. Sou, no sentido literal do termo, um airborne.
Não que tenha nascido a bordo de um helicóptero da Base Aérea nº 4 (nesse caso
seria air born) mas porque vim ao mundo em 1958, o ano em que pela primeira vez
o número de passageiros aerotransportados nas rotas transatlânticas ultrapassou
a quantidade de viajantes que faziam de barco esse mesmo trajeto. A segunda
metade do século XX, marcada pelo advento da aviação a jato, revolucionou a
nossa perceção do tempo e do espaço, encolhendo a geografia, encurtando as
distâncias, mitigando o isolamento e, no caso específico dos Açores,
transformando o arquipélago num metafórico porta-aviões fundeado entre a Europa
e a América.
“Grandes navios verdes
eis que navegam
ancorados, para sempre
(...)
enormes raízes de lava
prendem-nos firmes
a meio do atlântico
ao passado.”
Assim falava John Updike dos Açores quando por aqui
passou, em meados da década de 1950, a bordo de um paquete. O lindíssimo poema,
traduzido por Jorge de Sena e publicado por Pedro da Silveira no suplemento
literário do jornal A União (5 Setembro 1969), capta de forma exemplar a
estirpe oceânica do arquipélago, mas essas mesmas raízes de lava que, segundo
Updike, prendiam as ilhas ao passado, quando a baía de Angra era a escala de
todas as Índias, são também aquelas que abraçaram os Açores ao futuro da
navegação aérea no decurso do século XX. Como muito bem resumiu José Medeiros
Ferreira numa frase – “a Marinha e as doutrinas do poder naval puseram em
evidência a importância estratégica dos Açores, mas caberá à Aviação e ao poder
aéreo a exploração cabal dessa mesma importância”.
Compreensivelmente, a reputação geoestratégica do
arquipélago centrou o debate científico e a opinião pública em torno da
utilização militar da Base das Lajes, relegando para segundo plano tudo quanto
dissesse respeito ao significado dos Açores para a aeronáutica civil, como
comprova o estado de decadência em que se encontra um dos símbolos históricos
mais tangíveis da navegação aérea transatlântica, a torre de madeira do
aeroporto de Santa Maria, isto para não falar da sua singular envolvente
urbanística, também ela caída na vala comum do esquecimento. Talvez porque a aviação
e o transporte aéreo façam hoje parte do nosso quotidiano, temos dificuldade em
reconhecer e valorizar a sua história e património material, sobretudo quando
este diz respeito ao passado recente e ainda não adquiriu a patine necessária
para entrar nos panteões da memória.
Corremos o risco de fazer uma avaliação ambígua do
assunto – demasiado atual para ser objeto de investigações históricas,
demasiado antigo para ser alvo de preocupações políticas – que pode comprometer
de forma irremediável o legado patrimonial que deixaremos às gerações futuras
sobre os Açores e a navegação aérea transatlântica. E quando chamo a atenção
para este perigo não me refiro apenas ao que se vai erodindo à vista de todos
nós – e o aeroporto de Santa Maria é disso o melhor exemplo – mas também ao
património arquivístico constituído por milhares de metros lineares de
documentação (sem sex appeal museológico) que se encontra à guarda de uma
empresa pública (ANA-EP) recentemente privatizada pelo Estado. Desconheço se
nos termos do contrato de venda da ANA o Governo da República salvaguardou a
alienação desse património arquivístico; desconheço se o Governo Regional dos
Açores demonstrou qualquer preocupação sobre a matéria, mas o que é certo é que
sem esse suporte documental será impossível fazer, a partir de fontes
portuguesas, a História da navegação aérea transatlântica, onde os Açores
desempenharam um papel destacadíssimo, que não se confina apenas às
ilhas-aeroporto mais conhecidas – Terceira e Santa Maria – e abarca também o
primeiro grande aeroporto internacional do arquipélago – a baía do porto da
Horta – onde amararam os principais voos transatlânticos da aviação naval no
período compreendido entre a I e II Guerras Mundiais.
Faz algum sentido lançar este alerta no mesmo ano
em que o manuscrito do Diário da Navegação de Vasco da Gama à Índia foi
classificado pela UNESCO como património mundial. A História faz-se com
documentos. A condição periférica de uma comunidade, nacional ou regional,
acentua-se quando ela não acautela o seu património arquivístico. Acertar
contas com o passado através de uma boa rede museológica, ou à custa de
eufemísticos “Centros de Interpretação”, será bom para o turismo e para a
população açoriana em geral, mas não satisfaz as exigências de uma História – a
da Aviação nos Açores – que se encontra ainda por fazer.
(Imagem de Foto Pepe; título original: Os Açores e
a aviação. Muitas histórias para contar, uma História por fazer)
CARLOS GUILHERME RILEY
Historiador e professor universitário
Natural de S. Miguel, onde reside